Há aproximadamente um ano, durante uma operação da Polícia Judiciária (PJ) na casa dos líderes romenos de uma rede de tráfico de seres humanos, que operava a partir de Cuba, no Alentejo, foram descobertos registros detalhados dos trabalhadores explorados. Esses registros incluíam listas de nomes e as horas diárias que cada um passava a trabalhar na agricultura. Alguns eram simplesmente identificados como “negrii”, que significa “negros” em português. Isso resumia, em uma palavra, o que eles representavam para a rede: escravos que permitiram à organização faturar mais de €7,7 milhões em cinco anos, sem pagar impostos como o IVA, IRC ou contribuições à Segurança Social.
Os detalhes deste caso foram revelados na acusação recentemente divulgada, que resultou de uma investigação liderada pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, em colaboração com a Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ. No total, 51 arguidos, incluindo 41 indivíduos e 10 empresas, foram acusados por associação criminosa, tráfico de seres humanos e branqueamento de capitais, com 26 arguidos em prisão preventiva.
Esta operação representou uma das maiores ações de combate à exploração de trabalhadores agrícolas no Alentejo, envolvendo cerca de 400 inspetores em cinquenta buscas. A rede era altamente organizada, hierarquizada e multinacional, com presença em pelo menos 14 localidades do Baixo Alentejo e envolvimento de diversos grupos étnicos, incluindo romenos, portugueses, moldavos, indianos, guineenses e ucranianos.
A investigação revelou que os líderes da rede eram dois cidadãos romenos que recrutavam concidadãos com ligações familiares para a sua organização. A rede operava com três grupos distintos, que se encarregavam de tarefas específicas, vítimas e lucros. Além dos trabalhadores, a organização envolvia colaboradores asiáticos, africanos e portugueses, cada um com funções específicas. O “escritório” informal da organização estava localizado no Café Gazela, em Beja.
Embora a acusação se baseie na identificação de 55 vítimas, a documentação e informações recolhidas durante a investigação sugerem que o número de trabalhadores explorados poderia chegar a milhares, incluindo timorenses, romenos, moldavos, indianos, ucranianos, paquistaneses e senegaleses. No dia da operação policial, em 23 de novembro de 2022, foram identificadas 457 pessoas em condições deploráveis, com três delas precisando de assistência médica.
As vítimas eram atraídas com a promessa de empregos nas explorações agrícolas portuguesas, com a oferta de bons salários, alojamento adequado e boas condições de trabalho. No entanto, a realidade era muito diferente. Elas eram forçadas a trabalhar longas horas por um salário mínimo, viviam em condições degradantes e eram submetidas a ameaças físicas e psicológicas.
Os trabalhadores eram transportados para Portugal por várias rotas, incluindo voos e viagens terrestres em carrinhas ou camionetas. A maioria dos imigrantes era angariada em Portugal por intermediários asiáticos.
O despacho de acusação revela ainda detalhes chocantes sobre as condições de vida dos trabalhadores explorados, incluindo casas superlotadas, falta de higiene, fome e pagamento inadequado. Os protestos e reivindicações eram reprimidos com ameaças e violência física. A rede também contava com a cumplicidade de empresas fictícias e uma solicitadora portuguesa para facilitar o tráfico de trabalhadores.
Apesar das dificuldades e dos riscos, alguns trabalhadores conseguiram escapar ou serem resgatados por autoridades locais. O caso revela a extensão da exploração de trabalhadores em Portugal e a importância de combater esse tipo de crime de forma rigorosa.
Foto: O Lidador