Estão a decorrer este fim-de-semana as filmagens do documentário “A BRUXA DO CASTELO DE VILA VIÇOSA”, da autoria do realizador calipolense Daniel Moreira.
Esta iniciativa, baseada numa história bem conhecida, conta com o apoio da Câmara Municipal de Vila Viçosa e da Fundação da Casa de Bragança, assim como a participação do Grupo de Teatro de Amadores de Vila Viçosa.
Como já notíciado na Rádio Campanário, a lenda da Bruxa do Castelo de Vila Viçosa data de 1886
“Quando a velha Maria Gertrudes, criada de recados da Senhora Nunes que morava na Corredoura (Rua Florbela Espanca), percorria as ruas e vielas para fazer algum mandado, os insultos surgiam dos postigos dos portados, das janelas e das lojas entreabertas…
– Lá vai a Bruxa! Lá vai da Bruxa do Castelo! Olha a desavergonhada da velha!
A má fama é como a nódoa de azeite. Cai e espalha-se imediatamente. E nunca mais se lava…A que um dia caiu sobre aquela pobre mulher de tal modo alastrou que não houve tempo que a desfizesse…
Alguém vira e logo propalara que ela, certa noite, fora de horas, quando tudo era escuridão, estava a agitar uma candeia acesa, entre as ameias das muralhas do Castelo, que dão para o lado da Terrugem, Vila Boim e Elvas, mesmo junto do cemitério (onde havia sido o antigo Bairro dos Judeus).
Esse alguém afirmara ainda que a surpreendera em trajes negros, com um pequeno xaile de lã na cabeça e uma cruz no peito. Quando lhe perguntaram o que fazia ali naquela noite escura e fria, ela respondeu:
– Estou à procura da única tesoura que tenho e que perdi esta tarde!
A história, que não convenceu o povo imaginoso, rapidamente foi contada e todos ficavam aterrorizados com a sua presença.
Indiferente aos boatos, lá ia ela, todos os dias, levar as filhas da patroa ao Colégio, ao lado da Igreja de São Bartolomeu, buscar uns sapatos em amanho, ou comprar umas nabiças no mercado. Olhos pesados e tristes, numa face enrugada envelhecida pelos anos, cumpria escrupulosamente as suas obrigações, arrastando as chinelas de pano grosseiro. O que se dizia dela na Vila não a preocupava. Maria Gertrudes, mulher honrada e boa que sempre fora, de vida séria e honrada, limitava-se a uma mudez confrangida, perante as acusações de que era alvo.
Quando moça, bonita e pretendida, fora uma excelente criada de servir, Casou ainda nova, à face da Igreja e honrara o homem de quem se enamorou. Do matrimónio nasceu um filho, o seu bem mais precioso.
Ao invés de arreliar-se com as acusações, evocava na sua memória as velhas casas fidalgas onde servira, do Tomé de Sousa, dos Machados ou dos Matos Azambuja. Lembrava-se dos alegres dias do seu casamento, dos arraiais dos Capuchos e do São Mateus e das “saias” que cantava por esse tempo…
O alvoraçado contentamento daquela hora em que teve o seu primeiro e único descendente, também era recordado. Depois da morte inesperada e prematura do seu marido, o seu José de Pardais, que um dia ficara debaixo das rodas da carreta que conduzia, o filho, Manuel de Pardais, passou a ser a sua única preocupação. Casado com a Maria do Alandroal, vivia com esta na rua da Corredoura…
Viúva e só, depois do casamento do Manuel, passou a viver numa velha casa com restos góticos do Castelo (na Rua de Estremoz), de onde saia todos os dias, pontual e cumpridora, para tratar dos seus deveres. Entretinha a fome com uma côdea de pão duro e duas azeitonas tiradas da tarefa, às quais se juntava a humilhação das acusações de que era alvo quando saia à rua.
– Bruxa! Pobre de mim que não sei o que isso é! – dizia para com os seus botões.
Maria Gertrudes não era, nem nunca fora bruxa. Era tão somente uma pobre mulher que levava a vida a trabalhar, na ânsia de ganhar as sopas…Se permitia que assim lhe chamassem, era porque receava algo muito pior…
Os homens que labutavam nesta terra de mármore e de olivais, ganhavam a vida com a foice e a gadanha nas mãos, tratando das mondas, da cortiça e da azeitona. Nesse tempo da miséria, deitavam contas à vida e lembravam-se dos contos que ouviam à lareira nas noites invernosas, sobre libras e alqueires de prata, alcançados no contrabando da raia….
Os acarretos de mercadorias clandestinas trouxeram para alguns proventos certos e fortunas consideráveis.
E a aliciante tentação do contrabando apoderava-se de tal forma desses espíritos, que criava nos povos fronteiriços a ideia de um inofensivo e inocente passatempo, apesar deste ser um crime punível. A pobreza e a fome assolavam o Alentejo e afligiam muitos calipolenses… A miséria despoletava um intenso vaivém dos dois lados da fronteira, em que os mais destemidos procuravam a sobrevivência.
Indiferentes ao perigo, os contrabandistas, ardentes, fogosos e apaixonados, verdadeiros heróis desse tempo, arriscavam nas aventuras, para fugirem às balas certeiras das autoridades…
Pois o filho de Maria Gertrudes, o Manuel de Pardais, tornou-se num desses homens.
Queria fazer fortuna pelo contrabando, trazendo coisas de Espanha que se destinavam à vila e que fazia nela entrar durante a noite. O bom nome de que o Manuel de Pardais disfrutava, afastava qualquer suspeita.
No Castelo, onde vivia Maria Gertrudes, as vizinhas desconfiadas não lhe dirigiam a palavra. Entre os que ai moravam, havia dois guardas-fiscais que só paravam na sua casa do Castelo, paredes meias com a dela, nas horas de folga do seu insistente trabalho de sentinelas vigilantes da fronteira com Espanha.
Mas eles, como os outros, se reparavam na vizinha, era apenas para a condenarem pelo seu triste fado, para lhe fazerem as figas destinadas a afugentar o mau-olhado e excomungar o mal de que dai pudesse resultar… No verdadeiro e único motivo do facto que dera origem à atribuição do nome de bruxa, ninguém acertava. E ele existia…
O filho de Maria Gertrudes, metido no contrabando, corria muitas noites os maiores riscos e ela, por não conseguir desviá-lo da vida aventureira que levava, sofria em silêncio. Tinha que ser, contra a sua vontade, sua cúmplice, auxiliando-o como podia, nas informações a respeito dos guardas-fiscais, seus vizinhos, livrando-o assim das esperas ou caçadas que estes faziam a quem se dedicava àquela prática ilícita.
Para que o filho pudesse entrar livremente em Vila Viçosa com os pesados fardos de tabaco e outras mercadorias, Maria Gertrudes ia, durante a noite, ao frio e ao calor, no verão ou no inverno, conforme combinação prévia, dar-lhe das ameias do Castelo, virada para as terras de Espanha, o sinal de que os guardas tinham regressado a casa.
A horas mortas, erguia-se da cama e, de forma lenta e cautelosa, com o coração triste e em sobressalto, lá ia até á muralha, agitar a candeia acesa, dando conta ao filho que podia entrar na vila sem receio.
Tudo fazia para evitar que Manuel fosse preso ou morto e os momentos de angústia era constantes. Maria Gertrudes vivia apavorada e cheia de tristeza…Mas jamais deixou de acudir o seu filho.
E foi por esse motivo, bem diferente do que se imaginava, que foi surpreendida por uma vizinha, na muralha, com a candeia na mão e um lenço de lã posto sobre a cabeça.
Dizendo que tinha ido procurar uma tesoura, o argumento não foi eficaz… Assim se criou a lenda da bruxaria, tecida à volta da pobre e velha viúva, triste, infeliz e sem fortuna… Assim cresceu a ideia de que Maria Gertrudes falava com o Diabo à meia-noite, na muralha do Castelo.
Manuel de Pardais foi muito tempo lembrado por ser um contrabandista destemido e arrojado. Tinha a força de Hércules e a matreirice de uma raposa, para fugir a tempo da guarda…. Enquanto havia trabalho na azeitona ou na labuta das herdades, Manuel não se negava, pois não era um homem de má condição. O sangue dos seus chamava-o para essa luta pelo pão de cada dia. Na época de crise, sem mondas, nem ceifas, amanhava os sapatos velhos ou limpava a caçadeira.
Continuava a ser, no pensar de todos, o trabalhador infatigável e talvez por isso, a sua outra atividade não levantasse suspeitas. Todas as manhãs partia para o trabalho e de lá voltava á noite. Quem o via regressar, pensava que ele ia encontrar o justo repouso das suas fadigas.
Mas na verdade, partia sempre para as missões arriscadas, de que se incumbia às escondidas: conduzir os fardos pesados do contrabando que alguém deixava em sítio previamente combinado, que ia buscar e depois entregava na vila, em casa de confiança. Percorria os campos de Alburquerque a Olivença, entrando depois por Juromenha, ao atravessar o Guadiana….
A fuga às brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa quando se faziam incursões no interior do território espanhol em plena noite, de carga às costas que variavam entre os 25 e os 40 quilos, e ao longo de distâncias que poderiam atingir os 60 quilómetros, exigia indivíduos física e mentalmente dotados.
Mal iluminada, escassamente pontuada de candeeiros de petróleo que em noites de luar não se acendem, Vila Viçosa, no silêncio das noites, parecia dormir. Nem vozes, nem passos. O sossego dominava. E lá partia o Manuel de Pardais, pelo muro da Tapada Real, para um lugar só por ele conhecido, para trazer os fardos do contrabando…
Contrabandear significava correr grandes perigos. O afogamento, na travessia de rios e ribeiras, durante o transporte noturno em noites e madrugadas invernosas de chuva e frio, era um deles. Também havia o risco de ser preso. E os tiros, por vezes certeiros…
O contrabando foi, ao longo de séculos, o sustento adicional, para muitas famílias que não conseguiam suprir as suas necessidades no trabalho agrícola.
Desse tempo restam as memórias e os testemunhos das invulgares personagens que mantiveram um permanente jogo do gato e do rato no desempenho dos respetivos papéis: os que viviam do contrabando e aqueles que faziam valer a legalidade.
Esta história parece imaginada, mas foi vivida na realidade e ensina-nos que devemos tentar ser justos nos juízos que formulamos sobre os outros. Nem tudo o que parece, é…
A dor de Maria Gertrudes pela vida paralela do filho, mostra-nos que o coração de Mãe é sempre condescendente e carinhoso. A má fama que criou e que se propagou pela Vila Viçosa de então, ignorou o seu drama íntimo. Dai que o autor tivesse tido a necessidade de o dar a conhecer, para que algum ensinamento ou proveito possa vir daí a ser encontrado…
Este é um resumo e uma adaptação do conto “A Bruxa do Castelo de Vila Viçosa”, obra escrita por Celestino David, para a Livraria Escolar de Vila Viçosa (propriedade de D. Joana Ruivo, na Rua Florbela Espanca), em 1984, nas comemorações do seu 25º aniversário. Esta edição contou com desenhos do pintor Armando Alves.”