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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

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A lenda das quatro cruzes de Vila Viçosa.

Quase todos os Calipolenses conhecem esta história, que se tornou lendária e com várias versões. A que conto nestas linhas é da autoria do Padre Joaquim Espanca, que foi quase contemporâneo destes trágicos e verídicos acontecimentos…

Corria o ano de 1838…

Por aqueles dias, aquartelou-se no Castelo de Vila Viçosa o regimento de Infantaria 4º, comandado pelo Tenente João Caldeira. Três soldados deste destacamento começaram a dar uns passeios vespertinos até à Quinta da Fonte da Cebola de Baixo, situada a oriente de Vila Viçosa. Tratava-se de um lugar inóspito e nada convidativo a caminhadas.

O hortelão e a sua mulher, por serem hospitaleiros, disponibilizavam merendas de frutos aos referidos soldados, que ali se deslocavam quase diariamente. Havia portanto entre os soldados e a família do hortelão um princípio de amizade.

No dia 19 de Dezembro, o hortelão, chamado João Baptista Picanço, veio logo de manhã ao mercado semanal de Vila Viçosa para vender quatro ou cinco porcos e assim poder pagar ao senhorio a renda anual da quinta. A venda dos suínos era feita no Rossio, onde foi visto pelos três soldados. Cumprimentaram-se e trocaram algumas palavras.

O hortelão demorou-se aqui até ao meio dia e, como não conseguiu vender os porcos, ordenou ao seu filho que os levasse de volta a casa. José Vicente, um dos três soldados, com a ganância de ficar com o dinheiro que João Baptista Picanço tivesse arrecadado pela venda dos porcos, chamou os outros dois camaradas de armas e engendrou um plano para que fossem nessa noite assaltar-lhe a casa e roubar o dinheiro (que não realidade não existia).

Como eram todos da mesma laia, concordaram com o plano, que parecia fácil e lucrativo. Ao cair da noite, vestidos com capotes de pano pardo e armados com baionetas e espingardas, saíram pela Porta de Olivença (no Castelo), passaram pelos ferragiais de São Domingos e pelo Pinhal de El Rei, para chegarem até à Quinta da Fonte de Cebola de Baixo. Seriam quase oito da noite, o que em Dezembro significa noite cerrada.

O hortelão daquelas paragens solitárias acabava de cear com a família, depois de terem cerrado a porta logo ao anoitecer, como eram costume nas habitações dispersas pelos montes que circundavam Vila Viçosa. Acercavam-se todos na chaminé, regalando-se no pino do Inverno com um bom lume. Os homens conversavam e as mulheres rezavam o terço.

No silêncio da noite, eis que de repente, se ouve bater na porta da casa!

Toda a família ficou assustada, pois naquelas paragens solitárias, fora de horas, todas as aproximações são suspeitas.

– Quem é? – pergunta o hortelão.

– Abra a porta!

– Eu não abro a minha porta de noite!

– Abra a porta, em nome da Rainha! – vocifera um dos bandidos engrossando a voz.

– Já disse! Não abro a minha porta fora de horas!

– Abra a porta ou deitamo-la abaixo!

E começaram os bandidos a dar coronhadas na porta. O camponês estremeceu de susto. Ocorreu-lhe então que pudessem ser soldados a fazer alguma diligência e disse para a sua mulher:

– É a tropa! Vou abrir!

A mulher, como que adivinhando a catástrofe que os esperava, rogou ao marido para que este não abrisse a porta. Mas os de fora instavam também, de forma mais agressiva e determinada:

– Abra a porta em nome da Rainha!

João Baptista Picanço levanta-se e destranca a porta, pega na chave e dá-lhe meia volta para a abrir. Enquanto fez isto, levantou-se também da chaminé o seu sobrinho José Joaquim Picanço, que achou prudente não assistir àquela visita domiciliária tão suspeita. Era melhor opção recolher-se mais cedo para o palheiro onde costumava dormir, juntando-se ao criado Daniel Boquinhas, que já lá se encontrava. Essa saída foi feita por um buraco rasteiro da casa e que dava passagem para o palheiro e para a cavalariça. Este procedimento era muito utilizado nos montes alentejanos, a fim de poderem ser trancadas por dentro as portas das cavalariças e deste modo ficarem mais seguras.

Quando o hortelão abriu a porta da casa, logo o bandido lhe infligiu um golpe tão violento na cabeça, que lhe enterrou os fechos no crânio, fazendo-o cair de costas, morto… À vista deste triste cenário, levanta-se a mulher em prantos e aos gritos de socorro, sustentando nos braços um filho de três anos, que afagava enquanto se aqueciam na chaminé.

E logo o segundo bandido lhe deita as mãos às orelhas, para lhe roubar os brincos… Assim que os retirou, os bandidos trespassaram-na a golpes de baioneta, deixando-a estendida ao pé do cadáver agonizante do marido. Também o filho mais novo sofreu o mesmo destino… Eram já três os cadáveres que se encontravam no meio da casa.

Restava uma filha com vida, já mulher feita e um seu irmão mais novo, ainda adolescente.

Enquanto os bandidos José Nascimento e José Cotovio perpetravam as mortes referidas, o chefe dos bandidos, José Vicente, guardava a porta da rua, para que ninguém passasse por ela. Nem uma perdiz que se encontrava numa gaiola no interior da casa escapou à fúria dos assaltantes.

Os bandidos decidiram então não executar a filha e a filha, a fim de saberem onde se encontrava o dinheiro da venda dos porcos e mais algum valor que pudessem encontrar. Como estes responderam que a venda dos porcos não se havia concretizado, ordenaram à filha que esta abrisse as arcas onde apenas estavam uns vestidos de chita e outras roupas de escasso valor.

Porém, neste instante, o seu irmão, tremendo de susto e de horror, deixa cair da mão a candeia com que alumiava as ditas arcas. No meio da escuridão, o rapaz teve o feliz pensamento de esgueirar-se pelo buraco que dava acesso ao palheiro, escapando assim dos facínoras, juntando-se assim ao primo José Joaquim. O criado Daniel Boquinhas já não se encontrava no local, por ter fugido. É um mistério como o bandido José Vicente, à porta da casa, não deu por esse movimento…

Acendida de novo a candeia, perguntavam os bandidos pelo rapaz, de nome José da Conceição, que já ali não se encontrava. Foram até à porta, perguntando ao chefe José Vicente o que tinha acontecido sobre a fuga do moço. Este jurou que não tinha fugido pela porta. Nomeio da discussão, acabaram por assassinar a donzela. Houve quem afirmasse que tinha sido violada, antes do homicídio. No entanto, os meliantes, em vez de se preocuparem em gastar o tempo em vãs disputas , com acusações mútuas sobre quem teria deixado escapar o rapaz da família martirizada, não verificaram a outra porta da cavalariça e do palheiro, onde o mesmo se tinha escondido.

Em vez disso, arrumaram a trouxa e puseram-se a caminho do Castelo. No regresso, o criado Daniel Boquinhas, escondido no meio de um sobreiro, oculto na espessura da ramagem, viu-os passar e ouviu a discussão entre os três bandidos, que se acusavam mutuamente sobre a fuga do mancebo José da Conceição.

– O rapaz vai ser a nossa perdição! – dizia um deles.

E assim seguiram caminho, lastimando na retirada para o Castelo os factos ocorridos, o remorso dos crimes e o temor dos castigos. Depois de se terem afastado o suficiente, o criado Daniel desceu da árvore e aproximou-se da casa do seu amo, para certificar-se da tragédia. Chegando à porta da cavalariça, bateu e chamou por José Joaquim. Este, reconhecendo-lhe a voz, não hesitou em abrir-lhe a porta.

Reunidos os três que tinham escapado (o filho José da Conceição, o sobrinho José Joaquim e o criado Daniel), entraram pelo buraco que fazia a passagem da cavalariça para a casa principal e ai se depararam com um cenário de horror: todos jaziam já cadáveres. Quatro corpos ensanguentados, poças de sangue, um filho que sobreviveu, afogado em prantos e em suspiros, um sobrinho soluçando e um criado lastimando a cruel sorte dos seus amos.

Todos à luz mortiça de uma triste candeia já entornada e prestes a apagar-se numa fria noite de Inverno. Num acto determinado, resolve José da Conceição deixar o monte e sair com Daniel, para darem parte do sucedido ao seu Tio Cipriano José Picanço, rendeiro da Quinta do Mocho, não muito distante dali. Ficou José Joaquim acompanhando os cadáveres que tinham ficado no chão.

Quando começou a raiar o dia, partia Cipriano da Quinta do Mocho para a Fonte de Cebola de Baixo, seguindo depois para Vila Viçosa. Vinha queixar-se ao administrador do Concelho, Domingos Alves Torres, dos roubos e das mortes daquela fatídica noite.

Vila Viçosa fica em sobressalto.

Cipriano grita pelas ruas, como um louco:

– Justiça! Justiça!

Muitos correm ao lugar do sinistro. O Administrador do Concelho promove a marcha imediata de uma escolta para guardar a quinta, até que as autoridades judiciais redigissem o auto inicial do delito. Foi já cerca do meio-dia que as ditas autoridades chegaram ao local, para examinarem os cadáveres.

Vivia-se, na época, um clima de desconfiança entre Liberais e Absolutistas (a Guerra Civil havia terminado em 1834) e suspeitou-se que tivessem sido os Miguelistas os responsáveis por tão horrendo crime.

– Aqui está o que fazem os Miguéis! – proferiu o Tenente João Caldeira, que integrava o corpo das autoridades judiciais.

Todos os presentes pareceram concordar com esta acusação, quando José da Conceição, o filho sobrevivente de João Baptista Picanço, ouvindo o diálogo entre as autoridades, retorquiu ao Tenente, dizendo-lhe:

– Não, senhor, não foram esses homens que mataram os meus pais e os meus irmãos. Foram esses soldados que vossemecê ai trás.

João Caldeira ficou estupefacto, olhando para o Juiz Ordinário e para o Subdelegado. Todos ficaram surpreendidos, mas logo o Tenente, melindrado com aquela acusação e querendo mostrar-se imparcial, pergunta ao rapaz:

– Tu conheces os soldados?

– Conheço sim, porque eles até vinham dantes à nossa casa!

– Pois vem aqui ver se é algum destes! – prosseguiu João Caldeira, mandando formar a escolta.

O rapaz olhou para todos e concluiu que não era nenhum daqueles. Concluído o auto do corpo de delito, foi montado José da Conceição num jumento e levado para o Castelo, onde se formou todo o destacamento de infantaria nº 4, para que pudessem ser reconhecidos os três facínoras.

– Aqui está o primeiro – disse ele, percorrendo as fileiras com o Tenente; – e aqui está o segundo!

Porém, quanto ao terceiro, hesitou na acusação, designando um soldado conhecido como “Calvário”, que logo após o dedo acusador, clamou pela sua inocência.

– Rapaz, vê bem que não fui eu! Estou inocente!

Interveio então o Tenente, dizendo:

– Bem, bem, pelos dois eu já tiro o terceiro! Qual é o número do que falta aqui?

– Está no quartel, doente!

– Pois que venha! Vai chamá-lo!

Vindo pois o tal Cotovio, mostrando-se muito doente e avistando-o José da Conceição ao descer a escada para a praça de armas, gritou logo:

– É este mesmo! Não há dúvida!

E o Calvário começou logo a respirar mais tranquilo. José Cotovio mostrava sinais evidentes do crime: o capote estava ensanguentado e a baioneta, apesar de ter sido limpa, mostrava ainda sinais de sangue. Quando tirou o chapéu da cabeça, logo lhe caíram os brincos que tinha roubado à mulher do hortelão.

Descobertos os assassinos, logo veio uma escolta para os acompanhar até à cadeia civil, onde não tardaram a confessar o seu crime, declarando onde estavam as trouxas de roupa que tinham roubado e que se encontravam no interior da Fortaleza- Artilheira.

Enquanto isso, dava entrada no Rossio, em direção ao cemitério de São José (onde se encontra atualmente a Mata Municipal), uma carroça conduzindo os quatro cadáveres. O chefe da desventurada família tinha o braço esquerdo levantado para o ar, o que fez dizer a muitos que pedia aos céus vingança!

Os acusados foram declarados culpados das mortes da Família Picanço e foram condenados à pena de morte por fuzilamento, por serem militares.

No entanto, a pena foi comutada para José do Nascimento e José Cotovio.

Apenas José Vicente, o cabecilha, foi executado no Carrascal, junto da Igreja da Lapa, em Agosto de 1839. Foi sepultado no cemitério de São José, onde jazia a família Picanço.

Os outros dois bandidos foram condenados ao degredo para os presídios em África. Contudo, não sobreviveram muito tempo ao chefe. Um morreu assassinado numa prisão em Lisboa, antes de embarcar e o outro, pouco depois de chegar a África, morreu com febres…

Esta história sinistra ainda hoje perdura na memória dos Calipolenses. Já no final do século XIX era contada pelo Padre Espanca, que ainda não era nascido quando ocorreram os factos. Os seus pais relataram-na vezes sem conta, segundo afirmou. Ainda conheceu Cipriano José Picanço, irmão do infeliz João Baptista. Os sobrinhos José da Conceição e José Joaquim, que figuram na tragédia, morreram ainda moços. Foram eles que mandaram colocar a placa indicativa, no sítio que é hoje conhecido como Cruzes dos Picanços, ou as Quatro Cruzes.

Por: TIAGO PASSÃO SALGUEIRO


 

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