Nesta entrevista exclusiva à Rádio Campanário, João Nascimento dá a conhecer um pouco do seu percurso como um compositor que teve um amor tardio pela música.
Autor da composição “Misericórdia” e professor de música efetivo no Conservatório de Évora e na Academia de Música de Elvas.
P: Nesta introdução, sente que ao categorizar a sua paixão como um “amor tardio” meti demasiado a colher na sua relação com a música?
R: Não, a minha relação com a música é imprecisa. De facto, há um amor tardio, mas não na totalidade porque ele começou antes. O que é interessante aqui é o problema de dicotomia e do conflito. Eu tenho contacto com a música um bocadinho antes dos anos 80, porque tive uma banda Rock. Chegámos a gravar um disco no tempo que quando apareceu o Rock português mas, paralelamente a isso, estive a fazer os meus estudos universitários. Licenciei-me no princípio dos anos 80, e na década seguinte estive a trabalhar como professor de educação física e com deficientes.
Embora, ainda estivesse ligado à música, pois houve um festival da canção que fiz duas músicas para umas pessoas que conhecia.
“Quando se experimenta a arte, vivesse algo que é o pathos, portanto, o impacto da arte em quem a experimenta”
P: Quais eram assim as suas inspirações nesses tempos de Rock, talvez um Rui Veloso, não?
R: É engraçado que o nosso disco foi produzido pelo Ramón Galarza, conhecido baterista do primeiro disco, Hard Rock, de Rui Veloso, portanto claro que ele estava presente [nas minhas influências].
P: E que instrumento tocava o João?
R: Eu tocava baixo, cantava e fazia as músicas. O que é interessante nesta experiência e que depois se prolonga para a frente, é que quando se experimenta a arte, vivesse algo que é o pathos, portanto, o impacto da arte em quem a experimenta. Por isso é que a arte é muitas vezes entendida como uma dimensão mágica, na medida que transforma um pouco o estado de consciência da pessoa.
“A música tradicional Alentejana, é a música mais rica de Portugal, porque é polifónica.”
P: Será justo dizer que essa consequência da arte se aplica não só à música, mas também ao teatro, por exemplo?
R: Repare que, a primeira vez que vi a Pietà (obra de escultura), em Roma, o impacto que aquilo teve em mim fez-me chegar as lágrimas aos olhos. E portanto isto é a emoção de uma obra de arte na pessoa, é o pathos. E aplica-se a todas as disciplinas da arte, não só à música. Do que eu nunca me consegui libertar [no meu percurso], foi de ter experimentado isso.
No final dos anos 80, enquanto professor de educação física, que era um trabalho até bastante criativo e que me permitia estar bem na vida, fiz uma rutura. Queria compor, queria música e larguei tudo. Estive para aí dois anos a tentar viver da música, tendo em conta que eu não sabia uma nota de música, era um autodidata.
P: Portanto, essa rutura, foi uma busca para tentar replicar aquele sentimento que experimentou muito jovem?
R: É mais do que isso. Na generalidade as pessoas diziam que eu tinha enlouquecido, ou seja, larguei aquilo tudo para me meter à noite a tocar em bares e a fazer música – Foi um pequeno grito de liberdade.
Depois nos anos 90, começo a trabalhar com uma empresa que é a Mandala, onde começo a fazer os genéricos e umas músicas para eles. Mais tarde, pediram-me para fazer a música para um filme que se chamava Portugal Medieval, e aí é que vamos chegar à questão do amor tardio. Portanto, fiz a música para o filme, e quando ele é apresentado, quem tinha feito o texto para esse filme foi um professor de história chamado José Matoso. A relação com esse senhor fez-me questionar o meu lugar na música. Ele tinha-me dado uma cassete de uma obra de um compositor Alentejano, de nome Frei Manuel Cardoso, e ao ouvir aquela música, fiquei com uma tristeza por pensar que nunca iria conseguir fazer uma coisa daquelas. E então aí decidi, tenho que estudar, e larguei tudo, outra vez.
Quatro anos depois, já com quarenta anos, entro para a Escola Superior de Música para me licenciar em composição, e a partir daí a música levita.
P: Qual é a melhor parte do ensino da música e quão gratificante é ele para si?
R: São as pessoas. O poder comunicar e acima de tudo poder olhar para as pessoas e percebê-las. Eu tenho 63 anos, e a melhor lição que eu poderia dar aos meus alunos é que tudo é possível. No entanto, é preciso perseverança, humildade, trabalho e um pouco de fé.
Sou professor na Academia de Música de Elvas, que é uma escola fantástica.
P: Mas também leciona em Évora, certo?
R: Sim, são as duas escolas onde sou efetivo.
P: Qual é o seu processo criativo quando compõe?
R: Eu não consigo, ao contrário de vários compositores, escrever se não tiver uma ideia. Eu tenho um ponto de partida, uma ideia. Por exemplo, a “Misericórdia” que foi um quarteto que escrevi há uns anos, o conceito de misericórdia foi o resultado de um sentimento de pacificação que senti aqui há uns anos. Depois o compor propriamente dito, é um jogo de pensamento, de trabalho, de intelectual e de construção de regras.
“Porque o Alentejano é livre, até no momento de partir.”
P: Na sua opinião, e como Alentejano, qual é a relação da música com o Alentejo?
R: Quando eu fiz o mestrado, a minha tese foi uma composição chamada “Quadros de uma música Alentejana”. E a minha tese de doutoramento foi um trabalho chamado “Alentejo: Demanda por um Ethos Musical”, ou seja, todo o meu processo académico de investigação tem a ver com o Alentejo.
Repare, a música tradicional Alentejana, é a música mais rica de Portugal, porque é polifónica. Tem uma forma e estrutura própria que nas outras regiões do país não existe. O Alentejo tem todo ele uma dimensão profundamente mística que lida com o espaço profundo. E esse espaço conduz àquilo que é o mergulho dentro da alma do homem. Possivelmente uma das razões de haver tantos suicídios no Alentejo é por causa disso. Porque o Alentejano é livre, até no momento de partir.