“A saliva é um fluido que tem a grande vantagem de ser facilmente obtido através de métodos de recolha não invasivos, ao mesmo tempo que contém, na sua constituição, muitas das moléculas que se encontram em circulação, em níveis mais baixos do que no sangue, mas muitas vezes na mesma proporção”, começa por referir Elsa Lamy, investigadora do Instituto Mediterrâneo para Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento (MED) da Universidade de Évora (UÉ), co-autora deste artigo publicado no passado dia 15 de maio, onde participaram ainda Fernando Capela e Silva, Professor do Departamento de Biologia da Escola de Ciências e Tecnologia da UÉ, e investigador no mesmo instituto da UÉ, e investigadores da Universidade de Múrcia (Espanha) e da Universidade de Glasgow (Reino Unido), com os quais têm vindo a colaborar desde há uns anos em estudos acerca da bioquímica salivar.
O estudo da saliva tem vindo a ganhar especial atenção por parte da comunidade científica, ao longo dos últimos 20 anos sobretudo como fonte de biomarcadores de diversos estados patológicos e fisiológicos, área em que os investigadores da UÉ têm dedicado grande parte da sua investigação, sendo de destacar a publicação do livro “Saliva in Health and Disease. The Present and Future of a Unique Sample for Diagnosis”, uma obra interdisciplinar, em que participaram investigadores de 8 países: Espanha, Portugal, Brasil, Estados Unidos, Lituânia, Marrocos, Polónia e Reino Unido, e na qual se dão a conhecer os “princípios gerais sobre as possibilidades e usos da saliva na prática clínica e na investigação, e onde se alerta para as principais precauções que cada um deve ter antes de usar a saliva como amostra analítica”.
O surgimento da COVID-19 veio agora lançar outros e novos desafios à comunidade científica, “para os quais a saliva poderá ser um bom auxiliar na resposta à necessidade de diagnosticar a infeção pelo SARS-Cov2”, frisa Elsa Lamy, e, principalmente, para “testar a população quanto à presença de anticorpos para o vírus, clarificar os mecanismos envolvidos no desenvolvimento desta doença e encontrar soluções de tratamento dirigidas e eficazes”.
É sobretudo para o diagnóstico da presença do vírus que o potencial da saliva é reconhecido de forma mais imediata. Na realidade a presença do vírus na saliva é “um dos principais motivos para a recomendação do uso de máscara”, de modo a evitar o contágio, esclarece a investigadora da UÉ. A recolha de saliva “poderá ser uma alternativa menos incomodativa e dolorosa, comparativamente às amostras atualmente usadas para o diagnóstico de infeção por este agente, designadamente o exsudado da nasofaringe e orofaringe colhido com zaragatoa e/ou o aspirado endotraqueal ou lavado bronco-alveolar”.
Já no que se refere à presença de anticorpos, Fernando Capela e Silva afirma que “para grande parte dos agentes infeciosos, a saliva apresenta os mesmos anticorpos que estão em circulação”, fundamentando a ideia no estudo “High similarity of IgG antibody profiles in blood and saliva opens opportunities for saliva based serology”, publicado em 2019 na revista PLOS One, o qual demonstrou esse facto para mais de 200 tipos de antigénios testados, apontando oportunidades para uma “serologia baseada na saliva”. Os investigadores referem que “não há, até ao momento, estudos publicados que tenham confirmado a presença de anticorpos específicos para o SARS-Cov-2 na saliva, mas tendo em conta o tipo de anticorpos (IgM e, numa segunda fase, IgG) é expectável que estes se encontrem neste fluido”, apontando tais circunstâncias como uma “vantagem para a testagem de imunidade que será necessária nesta fase de desconfinamento”.
Por outro lado, a comparação da composição bioquímica da saliva entre indivíduos assintomáticos e indivíduos com diferentes níveis de gravidade é um dos principais aspectos a analisar esperando-se “encontrar marcadores de prognóstico, sem ter que sujeitar as pessoas ao desconforto de picadas para recolha de sangue, podendo, assim, obter pistas interessantes sobre os mecanismos envolvidos na infecção e na progressão da doença”, acrescenta Fernando Capela e Silva.
Outro dos aspectos a intrigar os especialistas é a perda de paladar relatado em muitos dos infetados pelo SARS-Cov2. Alguns dos trabalhos publicados “sugerem que esta questão possa estar relacionada com uma ação direta do vírus no Sistema Nervoso Central”, mas, ainda assim, será interessante “perceber se essa perda de paladar está relacionada com eventuais alterações na composição da saliva” até porque é conhecida “a importância desta quanto à percepção dos gostos”, refere Elsa Lamy, sendo este um dos aspectos também referido no artigo.
“Claro que, com exceção da deteção do vírus em amostras de saliva, todos estes aspetos são hipóteses baseadas no conhecimento que existe acerca das características deste fluido e de como ele se comporta noutras doenças” concluem os investigadores. Respeitante à COVID-19 e da relação deste com a saliva, “está ainda quase tudo por saber” frisa Elsa Lamy, ainda assim considera que “todo o trabalho que acrescente uma “peça” a este “puzzle” do conhecimento da doença, pode ser útil no combate aos efeitos deste vírus, e a Universidade de Évora tem as condições e o know-how para poder avançar nesta área” justifica a investigadora, referindo-se, entre outros, ao Laboratório de Fisiologia Animal Aplicada, do MED, no qual é desenvolvida investigação focada, principalmente, na relação que a composição salivar (proteoma salivar) tem com as escolhas alimentares e o metabolismo, participando também em trabalhos onde este fluido é usado para avaliar situações e condições de stress e de bem-estar.